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Foto do escritorSAND- Sarilhos Grandes

Histórias de Sarilhos

Como quase tudo que dizia respeito à organização social e aos comportamentos das populações, até tempos recentes, a condição da mulher estava muito sujeita à moral católica. As visitações pastorais a Sarilhos Grandes, para os séculos XVII e XVIII, ilustram bem essa questão. Estas visitas, sendo nesta região da responsabilidade do Patriarcado de Lisboa, procuravam avaliar os comportamentos morais, disciplinar os devassos e manter a ordem social. Conseguimos identificar cerca de 40 destas visitas para o lugar de Sarilhos, entre os séculos XVII e XVIII, oferecendo um retrato vivo do dia-a-dia das suas gentes. Vejamos um exemplo.

Na visita de 1729, realizada a 5 de Junho, foram entrevistadas 19 testemunhas. Entre outras acusações levantadas, muitas referiram Catarina Dias, de alcunha a 'mal casada', por ser «mulher desonesta», tendo «trato ilícito» com vários homens, nomeadamente Manuel Vieira, Domingos de Veras, vivendo «amancebada» com «mais consumação» com Manuel Gonçalves, sapateiro de Sarilhos Pequenos. Outras mulheres, como Joana Maria e Rosária Caetana eram também acusadas de andarem em «concubinato» com vários homens do lugar. De duas mulheres, António da Fonseca e Maria da Ascensão, era dito que tiravam o quebranto.

Da pronúncia realizada no fim da visitação ressalta que muitos dos homens eram admoestados a admitirem as suas culpas, pagando um certo valor e prometendo não voltar a ter qualquer relação desviante à boa moral, sendo alguns deles reincidentes nestes crimes. Já Catarina Dias era obrigada a abandonar o lugar de Sarilhos e o próprio Patriarcado no espaço de vinte dias, sob pena de prisão e de degredo para Castro Marim, no Algarve.

Neste caso preciso, e apesar de as mulheres possuírem, à época, um estatuto jurídico especial (diminuído pela sua própria condição, confirmando a discriminação de género), observamos uma pena mais pesada para Catarina Dias do que para os homens com quem tinha relações. Contudo, as constituições sinodais do patriarcado de Lisboa, de 1640, em vigor aquando desta visitação, eram claras quanto ao «crime de amancebamento» que era «estado de pecado mortal continuado» e «ruim exemplo» que «perverte a modéstia daqueles que sabem dele e a boa vida e costumes daqueles que o notam».

Disto tudo, o visitador, o Doutor Francisco Nunes Vidal, culpava o padre da paróquia, António de Semedo, por ter pouca vigilância dos seus paroquianos, sendo instigado a não admitir «assistência de semelhantes mulheres [públicas e escandalosas] na sua paróquia».

Como podemos ver, o conceito de privacidade era bem diferente daquele que hoje conhecemos, e os testemunhos arrolados mencionam que tudo era «voz e fama pública», podendo assim (e devendo) ser denunciado. Desta forma, as fronteiras da vida privada eram quase inexistentes e a esfera pública entrava na casa de toda a gente.



Na fotografia: o Livro de Devassas da Visita Pastoral de 1729, de Setúbal, Almada e Ribatejo, Ms. 382 do Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa.

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