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Rui de Castanheda e Rui Cotrim de Castanheda // Rui de Castanheda and Rui Cotrim de Castanheda

[PT]

A igreja de São Jorge de Sarilhos Grandes integra, desde os inícios do século XVI, a capela de Nossa Senhora da Piedade. Adossada ao seu lado Norte, esta foi erigida sob o patrocínio do Doutor João Cotrim, cavaleiro da Casa Real e oficial régio durante várias décadas[1]. No interior, encontramos, ainda hoje (conforme a fotografia seguinte), a sepultura de Rui Cotrim de Castanheda, aí identificado como “fidalgo da casa del rey D. Manuel”.

Muitos autores confundiram esta personalidade com Rui de Castanheda, capitão de uma nau da segunda viagem de Vasco da Gama à Ásia, em 1502[2]. Hoje, apesar de sabermos pouco sobre o percurso de cada um, podemos demonstrar que se trata de duas pessoas distintas, apesar de ligadas familiarmente.

Rui de Castanheda era filho de João Gonçalves de Castanheda, escudeiro da Casa Real e meirinho do infante D. Fernando. Em 1450, o rei D. Afonso V doara-lhe uma quinta, marinhas e pinhal em Sarilhos Grandes. Esses bens tinham sido confiscados a Fernão da Fonseca, criado e escudeiro do infante D. Pedro, por ter tomado o partido deste infante contra o rei, na batalha de Alfarrobeira, em 1448. Mais tarde, Rui de Castanheda herdou estes bens e viu-os confirmados pelos reis D. João II e D. Manuel, em 1491 e 1497 respectivamente[3]. Sabemos que, nesse mesmo ano de 1497, este Castanheda vivia em Aldeia Galega do Ribatejo (actual Montijo)[4] e que, anos antes, em 1490 fazia parte da Guarda Régia de D. João II[5]. Em 1502 capitaneou a nau Pantaleão Batecabello, na armada comandada por Vasco da Gama em direcção ao Índico[6]. Para além do seu nome surgir na lista dos capitães, nada sabemos sobre a sua acção na Ásia, apesar de esta viagem ser das mais documentadas deste período. Após o seu regresso da Índia (em 1503), Rui de Castanheda foi nomeado tesoureiro da Casa da Índia, cargo que exerceu entre 1507 e 1509[7]. Depois disso, perdemos-lhe o rasto até que o reencontramos a pedir a confirmação dos seus bens ao rei D. João III, em 1526[8].

Em 1532, Rui de Castanheda já tinha falecido. Nesse ano, um sobrinho dele, Rui Cotrim de Castanheda, filho da sua irmã (cujo nome desconhecemos), pediu ao monarca que confirmasse os bens do tio em Sarilhos Grandes, visto que este não tinha herdeiros[9]. Assim se revela a ligação familiar entre este dois homens!

Rui Cotrim de Castanheda era filho do Doutor João Cotrim[10], de quem herdou o apelido e a referida capela de Nossa Senhora da Piedade, que terá transitado para os seus descendentes. Sobre o percurso de Rui Cotrim de Castanheda, sabemos que terá participado num pequeno ataque a umas aldeias perto de Alcácer-Quibir, no Norte de África[11], em 1501, e que, em 1504, foi nomeado uchão da Casa Real, isto é, responsável por aprovisionar e gerir a despensa régia[12]. Manteve-se neste cargo durante mais de uma década, visto que vários documentos dos anos seguintes o identificam nessa posição. Em 1526, como se atesta numa visitação, era provedor da igreja de São Jorge de Sarilhos Grandes[13], tendo falecido entre 1532 e 1537, ano em que o seu filho (então menor) João Cotrim vem referido como herdeiro da capela de Nossa Senhora da Piedade[14].

Paralelamente a estes documentos, o foro de fidalguia destes dois homens é mais uma prova de estarmos perante dois indivíduos, uma vez que a sua categoria dentro da nobreza da Casa Real era diferente: Rui de Castanheda era cavaleiro, como sempre surge na documentação emanada pela chancelaria régia, e o seu sobrinho, Rui Cotrim de Castanheda era fidalgo da Casa Real ―diferentes extractos que comprovam diferentes percursos!

Conclui-se, assim, que o fidalgo que se encontra sepultado na capela anexa à igreja de São Jorge de Sarilhos Grandes é o sobrinho de um dos capitães da segunda armada de Vasco da Gama. A importância deste Cotrim de Castanheda na memória das populações era tal que, nos finais do século XIX e inícios do XX, ainda circulava a lenda de que fora sepultado com a sua armadura de prata e ouro[15]. Através do projecto SAND ― Sarilhos Grandes entre Dois Mundos ―, a abertura das sepulturas desta capela e o estudo bio-antropológico dos restos osteológicos dos indivíduos aí encontrados poderão confirmar ou infirmar a lenda e permitirão, sem dúvida, conhecermos melhor este “fidalgo da casa del rey D. Manuel” e revelarmos traços da história da povoação que dá o nome ao projeto e que dele se pretende que seja a maior beneficiada.


Notas

[1] As visitações da Ordem de Santiago atribuem inequivocamente a este fidalgo a origem da ermida – cf. por exemplo a visitação de 1512: Mário Balseiro Dias – Visitações e Provimentos da Ordem de Sant’Iago em Aldeia Galega do Ribatejo. Montijo: ed. Autor, 2005, p. 79. [2] Como Alberto Pimentel – A Extremadura Portugueza, Primeira Parte – O Ribatejo. Lisboa: Empreza da Historia de Portugal, 1908, pp. 123. Mais recentemente, Vasco Resende arrolou vários documentos sobre estes dois homens (que aqui citamos), mantendo a confusão entre os dois: A sociedade da expansão na época de D. Manuel I. Mobilidade, hierarquia e poder entre o Reino, o Norte de África e o Oriente. Lagos: Câmara Municipal de Lagos, 2006, p. 236. [3] A doação de 1450 e a confirmação de 1491 encontram-se no registo de chancelaria de 1497 – Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. Manuel, livro 38, fls. 84r-84v; cópia na Leitura Nova, Odiana, 1, fls. 106-107; publicado em História florestal, aquícola e cinegética. Lisboa: Ministério da Agricultura e Pescas, 1983, vol. IV, pp. 76-78. [4] Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. Manuel, liv. 16, fl. 126v. [5] Braamcamp Freire – «A guarda de D. João II no anno de 1490», Archivo Historico Portuguez, V, 1907, p. 356. [6] Luís Adão da Fonseca – «Os comandos da segunda armada de Vasco da Gama à Índia (1502-1503)», Mare Liberum, 16, 1998, pp. 16-17 e Sanjay Subrahmanyam – The career and legend of Vasco da Gama. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 192 e seguintes. [7] ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, liv. 15, fl. 27, publicado por Braamcamp Freire - «Cartas de Quitação del rei D. Manuel» N.º 553, Archivo Historico Portuguez, V, 1907, N.º 553, p. 322. [8] ANTT, Chancelaria de D. João III, liv. 36, fl. 174. [9] História florestal, aquícola e cinegética. Lisboa: Ministério da Agricultura e Pescas, 1990, vol. V, f. II, pp. 103-104. [10] A ligação entre Rui Cotrim e seu pai, o doutor João Cotrim, encontra-se na visitação de 1537: Mário Balseiro Dias – Visitações…, cit., p. 192. [11] Damião de Góis – Crónica do Felicissimo rei D. Manuel. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926, parte I, p. 107. [12] ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, liv. 23, fl. 7. [13] Mário Balseiro Dias – Visitações…, cit., pp. 103-104. [14] A capela era administrada por Adrião Álvares como representante do menor: Mário Balseiro Dias – Visitações…, cit., p. 192. [15] Alberto Pimentel - A Extremadura Portugueza…, cit., p. 124.


 

[EN] Rui de Castanheda and Rui Cotrim de Castanheda

The chapel of chapel of Nossa Senhora da Piedade (Our Lady of Piety) has been added, since the beginning of the 16thcentury, to the church of S. Jorge of Sarilhos Grandes. Built at the North side of the church, the chapel was sponsored by doctor João Cotrim, knight and officer of the Royal House during several decades[1]. Today, in the interior, we can still find (as we can see in the photo) the grave of Rui Cotrim de Castanheda, identified there as “fidalgo of king Manuel I” (fidalgo da casa del rey D. Manuel).

Many authors have mistaken this man with Rui de Castanheda, captain of one of the ships that took part in the second voyage of Vasco da Gama to Asia, in 1502[2]. At present, despite the little information on both these characters, and despite them being related by blood, we know that they are two different individuals.

Rui de Castanheda was the son the João Gonçalves da Castanheda, squire of the Royal Household and meirinhoof prince D. Fernando (1433-1470). In 1450, king Afonso V granted him one estate, salterns and pine forests in Sarilhos Grandes. This land had been confiscated from Fernão da Fonseca, servant and squire of prince D. Pedro, since he had rebelled against the king in the battle of Alfarrobeira, in 1448. Later, Rui de Castanheda inherited these lands and had the donation confirmed by the kings D. João II, in 1491, and D. Manuel I, in 1497[3]. Some sources show that in 1497 Rui da Castanheda lived in Aldeia Galega do Ribatejo (nowadays Montijo)[4]and that some years before, in 1490, he was member of the Royal Guard of king D. João II[5]. In 1502 he captained the nau Pantaleão Batecabello, in the armadacommanded by Vasco da Gama towards the Indian Ocean[6]. Although it is known that he was one of the captains,and this expedition has been described by many sources, there is no other information about his journey to Asia. After his return to Portugal (in 1503), Rui de Castanheda was named treasurer of the Casa da Índia between 1507 and 1509[7]. We only find him again in the sources in 1526, when his properties are once more secured by king D. João III[8].

In 1532 Rui de Castanheda had already passed away. In that same year, a nephew, Rui Cotrim de Castanheda, his sister’s son, had asked the king to confirm the properties of his uncle in Sarilhos Grandes, since he had died without heirs[9]. These sources reveal the family connection between these two men!

Rui Cotrim de Castanheda was the son of doctor João Cotrim[10], from whom he inherited his surname and the chapel of Nossa Senhora da Piedade, which passed on to his heirs. Regarding Rui Cotrim de Castanheda, we know that besides participating in a small military campaign on some villages around Ksar-el-Kebir, in North Africa, in 1501[11], he was nominated uchão of the Royal Household in 1504, that is, the person responsible for supplying and managing the royal pantry[12]. He remains in this position for more than a decade, as shown in several sources. In 1526 he was provedor of the church of S. Jorge of Sarilhos Grandes[13], and he surely died between 1532 and 1537, since in that last year his underage son (João Cotrim) is referred as heir of the chapel of Nossa Senhora da Piedade[14].

In addition to these documents that relate to these two characters, the foros of these nobles are different, showing that their own status in the nobility ranks was not the same. Multiple sources show Rui de Castanheda as knight (cavaleiro) and his nephew, Rui Cotrim de castanheda, as noblemen (fidalgo).

In conclusion, the noble that is buried in the chapel of Sarilhos Grandes’ church is the nephew of one the captains of the second armada of Vasco da Gama. The importance of this member of the Cotrim de Castanheda family had a long-lasting significance for the local community, since at the end of the 19th century and beginning of the next century a local legend was still told about him being buried with a gold and silver armour[15]. Through the project SAND – Sarilhos Grandes between two worlds -, the opening of the pantheon of the Cotrim family and the bioanthropological studies will allow to confirm the legend while knowing more about this nobleman, revealing new and untold aspects of the history of Sarilhos Grandes.


Notes

[1]The origin of the chapel is told on a visitação of 1512: Mário Balseiro Dias – Visitações e Provimentos da Ordem de Sant’Iago em Aldeia Galega do Ribatejo. Montijo: ed. Autor, 2005, p. 79. [2]Alberto Pimentel – A Extremadura Portugueza, Primeira Parte – O Ribatejo. Lisboa: Empreza da Historia de Portugal, 1908, pp. 123. More recently Vasco Resende also mistake these two men, despite listing many different sources that we quote here: A sociedade da expansão na época de D. Manuel I. Mobilidade, hierarquia e poder entre o Reino, o Norte de África e o Oriente. Lagos: Câmara Municipal de Lagos, 2006, p. 236 [3]Both confirmations are in the same document: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. Manuel, livro 38, fls. 84r-84v; published in História florestal, aquícola e cinegética. Lisboa: Ministério da Agricultura e Pescas, 1983, vol. IV, pp. 76-78. [4]Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. Manuel, liv. 16, fl. 126v. [5]Braamcamp Freire – «A guarda de D. João II no anno de 1490», Archivo Historico Portuguez, V, 1907, p. 356. [6]Luís Adão da Fonseca – «Os comandos da segunda armada de Vasco da Gama à Índia (1502-1503)», Mare Liberum, 16, 1998, pp. 16-17 e Sanjay Subrahmanyam – The career and legend of Vasco da Gama. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 192 and followings. [7]ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, liv. 15, fl. 27, published by Braamcamp Freire - «Cartas de Quitação del rei D. Manuel» N.º 553, Archivo Historico Portuguez, V, 1907, N.º 553, p. 322. [8]ANTT, Chancelaria de D. João III, liv. 36, fl. 174. [9] História florestal, aquícola e cinegética. Lisboa: Ministério da Agricultura e Pescas, 1990, vol. V, f. II, pp. 103-104. [10] The conection beweteen Rui Cotrim and his father, doctor João Cotrim, is in the visitação of 1537: Mário Balseiro Dias – Visitações…, cit., p. 192. [11]Damião de Góis – Crónica do Felicissimo rei D. Manuel. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926, parte I, p. 107. [12]ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, liv. 23, fl. 7. [13]Mário Balseiro Dias – Visitações…, cit., pp. 103-104. [14]The chapel was then managed by Adrião Álvares as representative of the underage João Cotrim: Mário Balseiro Dias – Visitações…, cit., p. 192. [15] Alberto Pimentel - A Extremadura Portugueza…, cit., p. 124.

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