Hora de pôr a mesa...
Deixemos de lado os temas mortificantes por mais uns tempos e voltemos à mesa, porque afinal de contas é a comida que garante a nossa existência.
O acto da refeição, mais do que um acto de subsistência, constitui um ritual socializante. Se é certo que o enquadramento da casa abastada é diferente daquela outra carente, o facto é que, pelo menos uma vez por dia, o núcleo familiar se reunia em redor de um fogo – e é por isto que, tal como nas Idades Média e Moderna, ainda hoje o conceito fogo se reveste de importância normativa no âmbito administrativo e social –, numa casa – nomenclatura dada a cada divisão na época medieval – ou mesmo numa cozinha, onde montavam uma mesa – e daí a expressão ainda hoje tão usada por todos nós e odiada pela generalidade da criançada, “vai pôr a mesa”.
Sobre a mesma, não eram normalmente colocados pratos, embora já existissem, obviamente, mas sim fatias de pão – normalmente terçado com vários cereais, ou de bolota e castanha, em épocas de escassez cerealífera –, copos – porque vinho e água, por vezes juntos, para suavizar o teor alcoólico do primeiro, eram, como ainda hoje, presença obrigatória na alimentação da época – e malgas com a comida – esta variava consoante o status social da família em questão, bem como da zona geográfica em que se insere: tendencialmente mais carne em zonas de interior e longe de aquíferos, e mais peixe e marisco junto ao litoral, bem como nas margens de rios e ribeiras.
Mas, como referimos inicialmente, mais do que um acto de subsistência, a refeição constituía também um momento de sociabilização e de cumplicidade, partilhando-se nesse momento, como ainda hoje, os feitos do dia-a-dia, momento também de solidariedade, sendo muitas vezes o pão, que servia de prato e que absorvia assim os sucos alimentares, era arremessado porta ou janela fora para alimento de mendigos e animais errantes.
Era também momento para negociações, para firmar acordos – políticos, comerciais, matrimoniais –, porque, afinal de contas, ainda hoje é à mesa que se congeminam os melhores negócios, sobretudo quando todos estão já devidamente inebriados nos prazeres de Baco.
Foi, e ainda o é, também a refeição o veículo de contacto com novas realidades culturais transfronteiriças, sobretudo com os produtos exóticos provenientes do império ultramarino português e que tanto contribuíram para o desenvolvimento e o aprimoramento da gastronomia portuguesa e cujo consumo pudemos encontrar nos esqueletos exumados em Sarilhos Grandes.
E porque a água começa a crescer na boca, aqui fica uma sugestão para um repasto com sabor a História, numa conjugação de sabores da metrópole com algum exotismo oriental:
▪ Receita do coelho (século XVI):
“ho coelho asado tomarão a sebola pisada muito meuda e afoga la am na manteyga e despois de afogada temperada de vinagre e deytar lhe am crauo e asafrão e pimenta e gengibre e amtão tomarão o coelho espedaçado e deyta lo ão demtro e dar lhe am húa feruura e porão húas fatias num prato e emtão deytarão o coelho em syma das fatias”
Let's put aside for a few more days the mortifying themes and come back to the table because after all, it's food that guarantees our existence.
The act of the meal, more than an act of subsistence, constitutes a socializing ritual. If it is true that the framework of the wealthy house is different from the poor one, the fact is that, at least once a day, the family nucleus gathered around a fire – and that is why, as in the Middle and Modern Ages, even today the concept of fire is of normative importance in the administrative and social spheres – in a house – nomenclature given to each division in medieval times – or even in a kitchen where they set up a table – and hence the expression still used today by all of us and hated by the generality of the children, "go set the table".
On the table, dishes were not usually placed, although they had already been invented, of course; bread slices – usually made of various cereals, or acorns and nuts, in times of cereal shortage – cups – for wine and water, sometimes poured together, to soften the alcoholic content of the first, were, as is still the case today, mandatorily present at every meal – and malagasy with the food – this varied according to the social status of the family in question, as well as of their geographical area: tending more meat in inland areas and far from aquifers, and more fish and shellfish along the coast, as well as on the banks of rivers and streams.
But, as we originally said, it was more than an act of subsistence, the meal was also a moment of socialization and complicity, sharing during that moment, as is still the case today, the daily feats, also a moment of solidarity; for instance, the bread, which was served as a dish and which thus absorbed the food juices, was often thrown out the door or window for beggars and wandering animals.
It was also a time for negotiations, to sign agreements – political, commercial, matrimonial – because, after all, the best deals are still today made at the table, especially when everyone is already well imbued in the pleasures of Bacchus.
It was, and still is, the meal that acted as the vehicle of contact with new cross-border cultural realities, above all with exotic products from the Portuguese overseas empire and that contributed so much to the development and improvement of the Portuguese gastronomy and whose consumption we could find in the skeletons exhumed in Sarilhos Grandes.
And because the water starts to grow in the mouth, here follows a suggestion for a History tasting meal, in a combination of flavors from the metropolis with some oriental exoticism:
▪ Rabbit recipe (16th century):
“the roasted rabbit will take the very heavily trodden onion and will drown it in the butter. And after drowning, it should be seasoned with vinegar, and threw with some clove, saffron, pepper and ginger, and then take the shredded rabbit and lie it in a pan, and give it a boil and put some slices [of bread] in a dish. And then, the rabbit will be served on the slices”.
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